Asiáticos reivindicam o 'fardo' modernizador do mundo
No final do século 19, Rudyard Kipling, o poeta do Império Britânico, descreveu no poema O Fardo do Homem Branco quais eram as tarefas inadiáveis dos europeus ocidentais em relação aos "semi-diabos", isto é, os povos bárbaros que habitavam o resto do mundo: lutar as "guerras selvagens pela paz" e "encher a boca dos famintos", mesmo ao custo de granjear o "ódio daqueles que você guarda". Um século depois, o chamado de Kipling - que apelava aos EUA para que ajudassem no esforço civilizatório dos britânicos - continua a ser atendido, agora em nome dos "valores democráticos". Mas, para o cientista político cingapuriano Kishore Mahbubani, esse estado de coisas está com os dias contados - o fardo atualmente está nas costas dos asiáticos, que devem "dividir o segredo de seu sucesso com outras sociedades".
Em entrevista ao Estado, Mahbubani disse que o "século da Ásia" é inevitável, porque o continente concentra a maior parte da população mundial, terá as maiores economias e está preparado diplomática e politicamente para assumir a responsabilidade de dirigir os destinos do mundo. À frente desse processo, segundo sua avaliação, estará a China, "o mais competente poder geopolítico do mundo", capaz de crescer e enriquecer sem atrair a ira dos vizinhos.
Para Mahbubani, que descreve sua tese no livro O Novo Hemisfério Asiático: A Irresistível Mudança do Poder Global para o Oriente, a reação do Ocidente à perda de hegemonia pode ser resistir ou aceitar a nova ordem; se resolver resistir, diz ele, haverá um período crítico de instabilidade do concerto jurídico mundial pós-1945, já ameaçado pela dupla moral ocidental - o velho "faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço". Leia a seguir a entrevista:
Por que o senhor pensa que este seja o "século da Ásia"?
Os asiáticos formam o grosso da população mundial, com cerca de 3,5 bilhões de pessoas. Se esse contingente fizer só metade do que fazem os europeus (700 milhões) ou os americanos (300 milhões), eles serão a maior fatia da economia mundial.
O famoso estudo da Goldman Sachs sobre os BRICs previu que, por volta de 2050, as quatro maiores economias do mundo serão China, Índia, EUA e Japão. Nenhuma única economia européia estará entre as quatro principais, mesmo que a Europa tenha sido dominante nos séculos 19 e 20. Conquanto esse desenvolvimento das economias asiáticas possa parecer uma aberração, devemos nos lembrar que as duas maiores economias mundiais entre o ano 1 e o ano 1820 eram China e Índia. Desse modo, no século 21, estaremos voltando ao normal, ou seja, a Ásia hospedando as maiores economias do mundo. E é mais fácil voltar à norma do que sair dela, razão pela qual o "século da Ásia" é inevitável.
O que é curioso é como poucos no mundo estão cientes de quão rapidamente as economias asiáticas estão crescendo. Larry Summers, o ex-secretário do Tesouro dos EUA, descreveu bem esse fenômeno quando ele me mandou o seguinte parágrafo, que eu inseri em meu livro: "Eles chamaram a Revolução Industrial de ‘revolução’ porque, pela primeira vez na história humana, os padrões de vida mudaram pelo menos 50%. Mantido atual ritmo de crescimento na Ásia, o padrão de vida pode mudar de modo 100 vezes mais acentuado. O crescimento da Ásia e de tudo o que o seguir será o tema dominante dos livros de história escritos daqui a 300 anos, com a Guerra Fria e o islamismo sendo abordados como temas secundários".
Em linhas gerais, como será o mundo neste "século asiático". Menos democrático? Mais pacífico?
Estamos entrando agora em um dos momentos mais plásticos na história humana. As decisões que tomamos hoje vão determinar o curso do século 21. O retorno da Ásia apresenta ao Ocidente duas opções: ele pode resistir ou pode se acomodar às novas potências asiáticas.
Agora mesmo, tanto os EUA quanto a União Européia estão enviando sinais ambíguos. Em sua retórica, eles celebram a volta da Ásia. Reservadamente, contudo, eles se expressam de modo mais negativo. O G8 é claramente uma organização crepuscular. Representa as potências econômicas do passado, e não do futuro. Ainda assim, eles relutam em admitir que China, Índia, Brasil, México e África do Sul entrem como membros permanentes do grupo. Se a resistência ocidental continuar, podemos ter um aumento das tensões e dos conflitos, embora a guerra seja algo remoto.
O grande paradoxo sobre a nossa situação global é que temos uma ordem mundial não-democrática, onde 12% da população do mundo vive no Ocidente e é essa população que toma as decisões em nome dos restantes 88%, ao dominar as instituições globais. Por outro lado, os 12% vivem nas mais democráticas sociedades do mundo. Ou seja: em casa, eles são democráticos; fora, eles não são. Eis o paradoxo.
Infelizmente, poucos intelectuais ocidentais irão admitir abertamente que eles estão tentando perpetuar essa ordem mundial não-democrática. Por isso escrevi em meu livro que os 3,5 bilhões de asiáticos não vêem o mundo como os ocidentais.
Quais são os principais problemas causados pela resistência do Ocidente em admitir que supostamente perdeu sua posição como liderança mundial incontestável?
Há vários problemas. Primeiro, a resistência ocidental a mudar pode ameaçar e desestabilizar a ordem jurídica estabelecida pelo Ocidente em 1945. Sob essa ordem, Japão e Alemanha puderam se reerguer pacificamente como grandes potências, sem a necessidade de irem à guerra. O Ocidente estava contente em apoiar essa ordem jurídica, desde que se sentisse confiante na manutenção das potências ocidentais como os países mais poderosos do mundo. Agora que as potências ocidentais, como China e Índia, estão emergindo, o Ocidente pode começar a renegar as regras que ele mesmo estabeleceu.
Uma segunda ameaça é a representada pelo protecionismo. Aqui, de novo, as economias ocidentais eram as campeãs da causa do livre comércio porque imaginavam que, no campo de jogo criado para assegurar a abertura do comércio internacional, as economias ocidentais surgiriam como vencedoras. Hoje, infelizmente, muitos ocidentais estão começando a acreditar que eles são os perdedores. Então, eles começam a gradualmente se afastar do ideal do livre comércio e, silenciosamente, se tornam protecionistas. Meu livro dá vários exemplos das novas e insidiosas formas de protecionismo que estão aparecendo.
Em terceiro lugar, a China e outras potências asiáticas têm respondido positivamente ao pedido de Robert Zoellick, o atual presidente do Banco Mundial, para se comportar como "investidores responsáveis". Mas seria uma tragédia se as potências ocidentais, elas mesmas, se recusassem a se comportar como "investidores responsáveis", como se depreende da decisão dos EUA e do Reino Unido de invadir o Iraque sem uma resolução legitimadora do Conselho de Segurança da ONU. Se as potências ocidentais mais importantes violam a lei internacional, como eles podem ter credibilidade para querer que as potências asiáticas a respeitem?
Os países asiáticos, particularmente a China, estão preparados para liderar o mundo? Eles são responsáveis o bastante para enfrentar os riscos e as tarefas em alguns campos diplomáticos críticos, como o Oriente Médio e a África?
A esta altura dos acontecimentos, a maioria dos países asiáticos, incluindo a China e a Índia, estão focadas em seu desenvolvimento econômico doméstico. Eles geraram um bom momento de crescimento, e estão empenhados em manter isso, sem se desviar por causa de outros estudos.
A China tem outra importante razão para adotar um perfil mais reservado no cenário mundial. O país sabe perfeitamente que, algum dia, os americanos podem se sentir ameaçados pelo crescimento da China. Então, Washington pode ficar tentada a conter a China, a exemplo do que conseguiu fazer com a URSS. Para evitar que os americanos se alarmem, a China decidiu evitar a liderança global e adotar a discrição. Deng Xiao Ping deixou um bocado de sabedoria política a seus sucessores em Pequim. Entre as famosas 28 expressões que Deng usou estão taoguang yanghui (esconda nossas capacidades e evite os holofotes) e shanyu shouzhuo (concentre-se em manter a discrição). Isso tem caracterizado o papel da China na arena internacional desde então.
A despeito de sua discrição na liderança global, a China emergiu como. Ascendeu consistentemente por três décadas sem ampliar tensões com seus vizinhos. Isso requer diplomacia inteligente. Além disso, num ataque preventivo contra qualquer política americana de "conter" a China, Pequim dividiu sua prosperidade com todos os seus vizinhos. Um dos movimentos mais brilhantes foi propor e concluir um tratado de livre comércio, em tempo recorde, com a Associação das Nações do Sudeste Asiático. Isso criou a maior área de livre comércio do mundo, com 1,7 bilhão de pessoas.
A China tem também desempenhado um papel responsável na África e no Oriente Médio. Os africanos estão felizes porque agora eles têm uma potência alternativa a quem recorrer, de modo a contrabalançar a tradicional dominância ocidental da África. No Oriente Médio, a China adotou a cautela e evitou agravar as muitas tensões causadas pelas mal-ajambradas políticas ocidentais para a região.
Os países asiáticos estão prontos para lidar com a ameaça do aquecimento global e para dar o bom exemplo nesse campo?
Há hoje um crescente consenso mundial de que o aquecimento global representa uma ameaça real. O principal impulso para o desenvolvimento desse consenso veio de vozes influentes nas comunidades científicas dos EUA e da Europa, que são seus advogados mais assertivos. Paradoxalmente, a maior resistência a qualquer ação efetiva para combater o aquecimento global também vem dos EUA. O resto do mundo confuso fica confuso com essas manifestas inconsistência e incompetência ocidentais. Em termos bem simples, há um problema de "poupança" e um problema de "emissão".
Quando a maioria das pessoas pensa na emissão de gases, pensa em novas emissões. Naturalmente, elas acreditam que isso seja a causa do problema. Mas o aquecimento não está sendo causado pelas emissões atuais, mesmo que esteja sendo agravado por elas. A causa fundamental do aquecimento é a "poupança" de emissões acumuladas desde a Revolução Industrial. Então, uma solução justa e equânime para o problema das emissões de gases deve atribuir responsabilidade tanto para a "poupança" quanto para o "fluxo" de gases.
Quando é o caso de atacar qualquer problema que ganhe características de assunto "global" (para usar uma expressão popular no Ocidente), é natural esperar que membros mais ricos da comunidade assumam maiores responsabilidades. Este é o princípio natural da justiça. No caso das emissões de gases, as nações industriais ricas do Ocidente têm uma razão adicional para ampliarem sua atuação: eles são primariamente responsáveis pelo "estoque" de poluição em nossa atmosfera. Passos na direção de uma solução devem incluir o reconhecimento claro, por parte das nações ocidentais ricas, de sua culpa, mas até agora isso não aconteceu. Em vez disso, muitos cidadãos nas sociedades ocidentais são impelidos a crer que o aquecimento global é resultado de recentes decisões de china e Índia (e de outras nações emergentes) para se industrializar. Tenho conversado com autoridades chinesas e indianas sobre o assunto, e ficou claro para mim que ambos os países estão prontos a aceitar sua parte nesse problema.
A nova liderança chinesa está bastante bem informada dos desafios que tanto a China quanto o resto do mundo estão enfrentando. Eles estão preparados para ser "investidores responsáveis" na administração desse problema. A questão a se fazer é se o Ocidente está pronto para, igualmente, ser um "investidor responsável". Se o Ocidente não estiver preparado para aceitar isso, não haverá solução para o aquecimento global.
O senhor escreveu que os EUA perderam sua autoridade moral para pedir a qualquer um que desista de seu programa nuclear. Por quê? E como, na sua opinião, os asiáticos lidarão com essa questão?
O desafio de responder à ameaça de proliferação de armas de destruição em massa é algo que todos deveríamos abraçar. O Tratado de Não Proliferação, que já foi considerado um passo significativo na direção da paz e da segurança internacional, está legalmente vivo, mas espiritualmente morto. O TNP era inerentemente discriminatório porque dividiu o mundo em os que têm e os que não têm armas nucleares, criando uma espécie de "apartheid nuclear", termo usado pelo ex-chanceler indiano Jaswant Singh. A despeito disso, o TNP foi razoavelmente eficiente por duas décadas na prevenção da proliferação horizontal, evitando que mais países tivessem armas nucleares, mas nada fez para prevenir a proliferação vertical (aperfeiçoamento das armas existentes).
Assim, quem matou o regime de proliferação nuclear?
Infelizmente, o primeiro cravo no caixão do TNP foi colocado pelo seu principal criador, os EUA, quando decidiram se afastar da ordem jurídica criada por eles mesmos em 1945. O problema é que esse movimento deixou o TNP sem dentes. Não tinha auto-regulação. Não tinha mecanismos para punir países flagrados em violação. Mais do que isso, os signatários podem sempre ignorar o tratado citando a cláusula de "interesse nacional supremo", sem que isso resulte em qualquer punição. Eis porque os EUA teve de recorrer ao Conselho de Segurança da ONU para lidar com a violação do TNP por parte do Iraque, porque apenas o CS tem autoridade e a legitimidade para impor sanções que todos os Estados-membros da ONU devem observar. Como os americanos começaram a abrir buracos nesse sistema, abriu as portas para manobras dos outros. Os EUA perderam sua autoridade moral para pedir ao Irã que respeite as resoluções do CS da ONU no momento em que foram à guerra sem que o CS a legitimasse.
Por sorte, com a possível exceção da Coréia do Norte e do Irã - e, claro, da Índia, do Paquistão e de Israel -, nenhum outro país asiático não-nuclear expressou o desejo de cruzar a fronteira nuclear. Temos de tentar preservar essa frágil ordem mundial. A melhor maneira de atingir esse objetivo é persuadir as cinco potências nucleares a respeitar suas próprias obrigações ante o TNP e começar o processo de, gradualmente, reduzir seus arsenais nucelares.
Os países ocidentais estão preparados para competir com os asiáticos no campo de batalha da economia?
Em teoria, os países ocidentais continuam comprometidos com a competição. O livre comércio e a ordem mundial pós-guerra foram presentes do Ocidente para o resto do mundo, e o Ocidente tem sido o custódio dessa benevolente ordem mundial. Apesar disso, americanos e europeus estão começando a se perceber como "perdedores" em vez de "vencedores" no comércio mundial. Assim, eles perderam a motivação e começaram a pressionar por mais liberação comercial. Durante a cúpula da União Européia em 2007, o presidente da França, Nicolas Sarkozy, disse uma frase famosa: "A palavra ‘proteção’ não é mais um tabu". Tais sentimentos ocidentais estão plenamente manifestados nas recentes negociações de Doha.
Na realidade, as economias ocidentais continuam a ser as mais competitivas. Levará algum tempo até que as economias asiáticas se tornem tão competitivas assim. Seja como for, mesmo os mais agressivos jogadores ocidentais terão de se adaptar aos novos competidores.
A teoria econômica ocidental freqüentemente cita o famoso pensador Schumpeter, que falou do conceito de "destruição criativa" como sendo inerente a qualquer sistema de livre mercado. Desse modo, quando o automóvel foi inventado, o transporte a cavalo foi destruído. Tal destruição é percebida como positiva, e não negativa. Por outro lado, quando americanos e europeus encaram a perspectiva da destruição de algumas indústrias de sua agricultura, que não poderiam sobreviver sem subsídios, eles se recusam a permitir que isso ocorra.
Chegou a hora de europeus e americanos recuperarem sua fé na economia de livre mercado. Enquanto algumas de suas indústrias não sobreviverão À nova competição dos países asiáticos, o crescimento econômico da economia global levará a uma melhora do padrão de vida para todos.
Finalmente, qual é o "fardo do homem asiático"?
A humanidade deve ser grata à civilização ocidental pela rica herança deixada ao mundo. De fato, a "marcha para a modernidade" que se acelera agora na Ásia não teria sido possível sem o Ocidente. Em meu livro, eu explico como as sociedades asiáticas estão conseguindo adotar com sucesso os sete pilares da sabedoria ocidental - economia de livre mercado, avanço na ciência e na tecnologia, meritocracia, pragmatismo, cultura de paz, Estado de Direito e promoção da educação. Todas as bem-sucedidas sociedades asiáticas deveriam enviar uma mensagem de agradecimento ao Ocidente.
Com esse sucesso, as sociedades asiáticas terão de assumir responsabilidades globais maiores. Eles devem dividir os segredos de seu sucesso com outras sociedades em todos os cantos do planeta. As potências asiáticas estão recebendo visitantes e estudantes de todo o mundo. Eles acreditam que possam também ser bem-sucedidos se replicarem a experiência asiática em sua sociedade. Temos de encorajar os círculos virtuosos de aprendizado. O sucesso da Ásia pode servir de enorme estímulo para isso.
NOTA: Kishore Mahbubani é reitor da Escola de Políticas Públicas Lee Kuan Yew, da Universidade Nacional de Cingapura. Foi diplomata cingapuriano por 33 anos. É autor do livro O Novo Hemisfério Asiático: A Irresistível Mudança do Poder Global para o Oriente.
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